Deixei passar o tempo, só um pouco, para escrever a
respeito da minha alegria. Após o concerto, abracei, apresentei, fiz o social,
fui a “mãe da noiva”. Não, ela não casou. Não com um namorado, noivo,
pretendente, nada disso. Ela casou há tempos com a música. Ela ouve, compra
cds, dvds, partituras. Vai a um bairro afastado em Buenos Aires para encontrar
um colecionador - que conheceu em uma dessas comunidades de malucos por ópera -
de lembranças da grande Maria Callas. Ela começou a ter aulas faz bastante
tempo em uma escola municipal. Cantava no coral a música da jabuticaba no chão!
E cantava, cantava... Participou de coral do Sesc. Arrumou um professor de
canto lírico que era líder de uma banda de rock! Conheceu a professora cantora
do Coral Lírico Municipal que era, por sorte do destino, quase nossa vizinha. Seguiu
uma interprete famosa... viajou para ver um show. Trocou informações,
figurinhas, amigos. Tem um quarto que é conhecido por aqui como “a hora da zona
morta” porque nele tem de tudo um pouco – maquiagem, echarpes, leques, uma
estante para partituras, um teclado - tudo ali dialoga com a paixão maior – a música.
Melhor dizendo com o canto. Acordo e ouço uma voz dos anos trinta, cantando
alto em minha casa. Outra hora é um velho filme americano em que são personagens
centrais Jeanette MacDonald e Nelson Eddy. Vem mãe, é o Réquiem, de Verdi! Vou.
Também fico emocionada. A música faz parte da minha vida. Há pouco era 1974 e
eu fui visitar meu pai em Brasília. Fiz visitas aos palácios, subi a torre para
apreciar a paisagem e, como já havia combinado com a amiga, comprei os
ingressos para a Abertura
Solene Para o Ano de 1812, de Tchaikovsky, que seria apresentada no ginásio
de esportes. Regência de Isaac Karabtchevsky. Não é preciso, mas faço questão
de dizer que a emoção foi tão intensa, tão intensa que ainda me faz ansiosa, feliz
e surpresa, quando falo a respeito. O maestro jovem, bonito, de cabelos pretos;
a energia da regência, a ânsia pelo tema de La
Marseillaise, pelos
fabulosos tiros de canhão e todos aqueles sinos... estão tão vivos. Uma
experiência musical feita para uma multidão. Hoje, se pensar muito a respeito,
posso até dizer racionalmente que a encomenda feita para a comemoração daquele
sete de setembro tinha uma intenção bem pouco ética ou artística. Afinal havia
um governo militar e... mas, eu não posso deixar de sentir o que senti. Emoção
estética. Arrebatamento. Alegria da beleza. Eu já tinha o hábito de ir a
concertos e, apaixonada, sempre que o maestro Isaac Karabtchevsky regia,
eu procurava estar lá. Projeto Aquarius. Orquestra Sinfônica Brasileira.
Se
acontecia em São Paulo, eu estava lá. E então, ontem mesmo eu me sento na Sala
São Paulo para acompanhar a Orquestra Sinfônica de Heliópolis, da qual é
diretor o senhor de 80 anos, o maestro Karabtchevsky. Me sento, acompanhada de
amigos, para vê-lo regendo a Sinfonia n.º 3 de Mahler, em que no coral que
entra no 5º movimento está ela. A filha, aquela que canta dia e noite, aquela
que ouve dia e noite infindáveis trinados das melhores e mais incríveis
interpretes de ópera. Aquela que me presenteou com o Cd da Sinfonia n.º 2 –
Ressurreição, de Mahler, porque é uma das que mais me emocionaram em minhas
idas aos concertos. Não, eu não sou conhecedora como ela. Tenho com a música uma
relação mais emocional do que de conhecimento. Mas uma coisa eu conheço bem...
conheço bem a alegria que senti, conheço bem as batidas do meu coração, conheço
bem a certeza de que a vida interpreta e religa as emoções. O tempo engendrou
essa certeza. Somos mãe e filha ligadas pela batuta das possibilidades
musicais.