segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Acordei "virada na Jiraya"

Ontem, a Paula e eu fomos ao teatro. Papa Highirte, de Vianinha. Texto fortemente político, histórico, emocionante. Senti falta de uma certa voz... uma voz mais potente, mais troante. O que foi dito, pedia um tom que não apareceu em alguns dos valentes atores da encenação. Valentes, porque, hoje em dia, para encenar Vianinha é preciso sonho e valentia. Poucos ouvem, poucos reconhecem as referências, quase ninguém tem tempo.

Aí, a amiga, ao final do espetáculo, lembra de um encontro que tivemos na Paulista, no dia em fomos assistir de Paolo Taviani, o belo Lenora, adeus.

Encontro teatral com uma travesti.

Teatral... essas personagens das ruas.

Personagem? 

Ela chegou, enquanto estávamos esperando o sinal abrir. Cumprimentou. Nós respondemos.

E aí, o diálogo se inicia.

"Nossa... vocês me responderam? Acabei de ser chamada de lixo, por uma moça. Ela me chamou de lixo, de imunda. Pediu para eu sair pra lá, que eu estava fedendo". 

Respondemos e continuamos. "Oi, toca o cotovelo, tudo bem, é seu aniversário, 34 anos, claro que compramos um sabonete".

Ela ria.

Eu lembro das sobrancelhas bem desenhadas, sinal de alguma vaidade em um tempo distante. Peruca desgrenhada ( essa palavra clichê é, talvez, a única possível ). Saia lambida, pernas finas, dentes estragados. Mais clichê para quem está há anos na rua. 

Fomos à farmácia e compramos sabonete e lenço umedecido. Pareceu uma boa ideia. Ela, perdida nos corredores, pegou um shampoo e nos pediu para comprar aquilo também. Falava em dar umas moedas, para pagar o extra,

Nunca, meu... nunca.

Pagamos e a Paula foi entregar.

Ela acenava para mim de longe. "Obrigada, linda" 

Obrigada, travesti, maluquinha, suja, fedida, mulher, vaidosa, da calçada, gente, pedinte, abandonada, traveca, menino, homem... gente. Você estava ali, para pedir que fossemos humanas. 

Acho que fomos. Sei lá. 

Enquanto escrevo, lembro de que contei a história do encontro para minha mãe e ela chorou. Chorou ao pensar na miséria e abandono. Chorei um pouco com ela. Penso nesse pouco choro e acho que é pouco, porque é tanto que não dá mais para chorar.

Então, agora cedo, nessa segunda em que, finalmente, nos lembramos do inverno, ouço uma motosserra a toda, na rua de trás, que vai sendo engolida e destruída sem nenhuma vergonha pela especulação imobiliária que não cessa, enquanto não desumanizar o que resta nos poucos bairros antigos da nossa cidade.

A motossera serra serra aquelas árvores do quintal... serra serra a memória... serra serra a possibilidade do sonho de uma cidade mais humana. Progresso burro e cruel.

E o menino/moça travesti da Paulista? 

Ela também foi serrada ao meio... "sai pra lá lixo, precisamos de espaço para os perfumadinhos" 

Gente, gentrificação, desertificação, desumanização. Falta voz.

Isso é que é sincronia na destruição. Esse é o nosso tempo.

Ela choramingou que não é lixo e ficou espantada, quando respondemos ao seu cumprimento, ouvimos sua história e compramos aquele sabonete.

Resumo da viração na Jiraya. Não perdoo o trovão que não apareceu em cena, no texto de Vianinha. Não perdoo a quem chama o outro de lixo. 

Não perdoo a motosserra..., aliás, ela também não perdoa nada. Continua troando aqui no meu ouvido e no meu coração.

Para seguir em frente, nas próximas semanas, verei o Fausto, do Zé Celso. Quem sabe, Mefistófeles de Goethe me anime a gritar mais alto.



Virado no Jiraya

Essa expressão usada quando uma pessoa está "fora de si" é uma referência a essa famosa série japonesa dos anos 80. Um dos motivos possíveis pode ser uma de suas frases famosas: "Não te perdoo", proferida antes de dar seu golpe fatal.