terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Inspiração

"... a percepção do sublime deve ser considerada como a origem das atividades criativas do homem, na arte, no pensamento e na nobre maneira de viver."

" A medida em que a civilização progride, a percepção do maravilhamento declina. Tal declínio é um sintoma alarmante de nosso estado de espírito. A humanidade não morrerá por falta de informação; e sim por falta de apreciação. O início de nossa felicidade baseia-se em entender que a vida sem maravilhamento não vale a pena ser vivida. O que falta não é a vontade de acreditar e sim a vontade de admirar."

    ( A. J. Heschel, in O último dos profetas - uma introdução ao pensamento de A. J. Heschel )

Esta noite, li um dos ensaios do livro que citei. Como, às vezes, acontece, eu resolvi tomar umas notas. São lembranças, percepções, bem aleatórias que tenho, enquanto leio. Quase que para provar mim mesma que eu li de verdade. Tão de verdade, que até refleti a respeito do assunto. Aqui vão três pequenos trechos. Amigos, são inspirações... não levem muito a sério.

I- Eu costumava dizer que ainda me espantava "discar um numero" e falar com uma pessoa que estava do outro lado fio. E nem era tão menina assim...

II- Maria Carolina de Jesus e Clarice Lispector são vizinhas no IMS-Paulista e isso é sublime. É o que a palavra constrói. Encontros de vida que, normalmente, nunca se cruzariam. Viva a sublime criação literária.

III - Me sento, com minha mãe, na praça, para um café ou não. Paramos para ela descansar e ficamos olhando "a banda passar". Eu me maravilho com as pessoas. São tão diferentes uma das outras. 

Às vezes, tem ares estúpidos, não sabem bem porquê estão ali, atravessando a rua, com o celular à mão, sem nenhum cuidado, sem perceber o perigo da existência. 

Às vezes, tem ares cansados, como a senhora na cadeira de roda, cabelos brancos, costas curvadas, mão esquecida. A cuidadora olha o celular, enquanto ela vive aqueles momentos de sol e vento ameno.

Às vezes, os ares são de bondoso e triste passeio de um do homem que vinha sempre com dois cachorrinhos simpáticos e agora entra na praça só com um deles.

Às vezes, o passeio solitário da japonesa solitária, que antes eram duas, não é triste como eu esperaria ser. É pleno de vida.

Às vezes, só o sorriso e a bala que adoça a tarde, oferta da jornaleira já é o maravilhamento!

São rostos maravilhosos que passeiam e vivem nos arredores da praça, entre as árvores sobreviventes. As que,arrancadas, choram pela impossibilidade de continuarem sublimes.



quinta-feira, 18 de novembro de 2021

A menina daqui.

Poderia ser a menina de lá, de Guimarães Rosa.

Poderia ser a menina-amante com seu livro, de Clarice Lispector.

Poderia ser a menina Virgínia, em Ciranda de Pedra, de Lygia Fagundes Telles

Poderia ser a Clarissa, de Erico Veríssimo.

Até a Narizinho, de Monteiro Lobato ela poderia ter sido.

Mas não foi, não é, não será.

Só um único traço linguistico resgatou a menina que havia nela.

-inho.

Docinho, paizinho, bonequinho, bonitinho, "pequeninha"?

Nada disso.

Rabinho

Nem rabicó, nem rabicho.

Rabinho

Vulgar, duro, cruel.

O traço marcado a dinheiro, abandono, crueldade de uma infância vilipendiada, humilhada e ofendida. 

Lemos juntas, ontem, o conto que abre o livro Anos de Chumbo, de Chico Buarque. 

Não a adianta querer mais Chico, ditadura militar ou um pouco de Machado de Assis.

O que ele nos dá é uma narrativa dura. Dói e quase não dói de tão dolorida. Como aquelas dores que, de tão profundas, deixam de ser sentidas.

Fala a menina daqui, a menina que ainda tem um prosódia infantil, na repetição de fórmulas narrativas típicas das menininhas, a menina deslumbrada com o lanche do mac, a coca gelada, o biquini amarelinho tão pequenininho, a série de tv.

Fala a menina absolutamente normalizada no abandono, na zona do meretrício infantil em que muitas meninas são jogadas nessa patria amada.

É um conto. Uma ficção. Só isso nos salva.

Estamos aqui em nossa sala, lendo uma ficção. Só isso nos salva.

O livro tem capa dura. Só isso nos salva.

Foi o Chico que escreveu. Só isso nos salva.

Só isso nos salva.

É isso, amigos!




domingo, 28 de março de 2021

Quincas, o cão.

Todos os amigos sabem. Tenho relido Machado, acompanhada da mãe. Ela lê no Kindle, com letras grandes, para não cansar a vista de 91 anos; eu, na minha edição Aguilar, comprada em suaves prestações mensais, na década de 80, do livreiro português que vendia de escola em escola. Dadas essas informações, digo que já estamos no Dom Casmurro. Acabamos, nesta semana, o Quincas Borba.

Das leituras compartilhadas, sempre vem um conversa ao telefone, às vezes, rápida, emocionada, reflexiva. Para ela, no calor da hora, as personagens são vivas, aliás, vivíssimas. A pobre Helena, vítima de uma vida de mentiras. Ela me diz: Por que não se falou toda a verdade? Por que mentir assim? Coitada, morreu de tristeza. A Sofia e o Palha foram sumamente sentenciados como falsos, sem-vergonhas, aproveitadores e outros adjetivos menos publicáveis.

A loucura do pobre Rubião e sua morte foram causas de lágrimas ao telefone. Enquanto falava do final do romance, minha mãe ficou silenciosa, de repente, senti que ela estava chorando. Imaginei a comoção das últimas linhas... o desvario, o abandono, a morte solitária;

Mas, teve um aspecto em Quincas Borba. que nos tocou de maneira especial. O próprio Quincas Borba - o cão - e sua trajetória de perda, abandono, dedicação. 

Tanto minha mãe, quanto eu sentimos a tristeza do cachorro de Rubião. Primeiro, vindo como herança, quase deixado de lado, se não fosse a cláusula de testamento. Depois, o abandono dentro da casa, esquecido, trocado pelas ilusões da sociedade. A ilusão de Rubião, ao dar ao cão, o pensamento do filósofo. Largado dentro do quarto, ao fim do romance, enquanto Rubião é levado à casa de saúde. Finalmente, o acompanhando em fuga para Barbacena. 



Quincas Borba tem uma morte triste, suja, magra...

Nós duas ficamos tocadas com a história do cão.

Essa emoção vem agora, depois de termos tido nossa própria experiência na companhia da nossa querida Sofia - a vira-lata que nos amou, durante os últimos 10 anos. 

Já escrevi a respeito dela aqui, marcando o momento triste de sua morte.

Ler o romance Quincas Borba, tem agora um aspecto a mais. Não é análise de personagens, não é a surpresa da presença do filósofo, na figura do cão. Não é só prestar atençao ao coadjuvante de Rubião, que ornamenta a narrativa. 

É o reconhecimento da presença amorosa, companheira, alegre de um cão. 

É, talvez, compreender melhor o relacionamento entre Rubião e Quincas Borba, o cão. 

É, talvez, sentir mais profundamente as tristezas do cão, Quincas Borba.