sábado, 16 de julho de 2022

Pontos de fuga - só um pouquinho da minha vida de estudante.

Terminei há dois dias a leitura do segundo volume da trilogia, O lugar mais sombrio, de Milton Hatoun. ( aqui uma entrevista do autor )

Ele mesmo disse que o terceiro está em elaboração, mas não pode dizer mais nada. É um escritor com um ritmo muito próprio. Não tem pressa. Passa, em suas entrevistas, a sensação de que dominou o que mais nos incomoda, o tempo e o espaço.

E é isso mesmo o que senti, lendo esse Pontos de fuga, nome do volume 2. Os tempos não são cronológicos, os espaços não são confortáveis. As personagens parecem aqueles amigos que tivemos nos anos 70 ( nós que estamos na mesma idade do autor ).

Eu, estudante da USP, passava pela Vila Madalena, de ônibus, em direção ao banco em que trabalhava meio período, logo depois do término das aulas da manhã. Sonhava em morar em uma daquelas casas, com jardins, telhados vermelhos, portões ainda de madeira. Hoje, foram transformadas em bares frequentados por mijadores de porta alheia, que vivem num frenético tempo de viver ao máximo.

Vivi anos, observando a vida daqueles moradores, a vida dos outros. Romantizava a militância política, a vida cultural nas repúblicas e pensões. Sonhava com os namoros, as experiências. Enquanto isso, lia no ônibus cheio a caminho do trabalho. Pensava no salário, que ajudaria a pagar as contas de casa e devia sobrar para os livros e alguma viagem, uma vez por ano. No cômodo e cozinha da Penha, cogitava uma mudança que nunca aconteceu. Morar na Vila Madalena, perto de faculdade, perto das mudanças importantes que desenhariam minha geração.

Vivia uma vida vicária. Nas franjas da sociedade em mudança. Atenta ao que significavam aqueles dias. As passeatas, a missa na Catedral, o show clandestino nas arcadas do Largo São Francisco, os desaparecimentos e os assassinatos. As assembléias na USP.

O que foi minha formação naqueles tempos? Foram as peças a que assisti, os livros que li, os shows que vi, os encontros que tive fortuitamente com alguns daqueles jovens ativos, interessantes, corajosos, sombrios, bonitos, musicais, coloridos. Os encontros vividos e os sonhados.

Agora, leio o romance de Milton Hatoun e me emociono. A minha vida vicária está ali também.

É um romance epistolar, como gostamos. São pequenos relatos de cartas não recebidas, encontros desencontrados, memórias de formação.

Para ler e gostar, deixem-se levar no ritmo lento, pensativo. Os capítulos são pontos de fuga. É preciso perseguir o texto. E é uma delícia.