domingo, 18 de outubro de 2020

Não leia...

Tenho assistido a umas séries de ficcão científica. 

Para ficar alheia? Para ter esperança no futuro? Para diversão? Para ter o que conversar, durante o café da manhã, entre uma reflexão que a leituras provocam, ou negar a reação àquele programa de rádio que insisto em ouvir? Para lembrar do passado recente em que esperar pelo capítulo novo, baixar num programa pirata, rezar para a legenda estar melhor essa semana era o máximo da tecnologia?

Para esticar a perna quase no finzinho do dia e esperar que o sono chegue, chegue e me liberte dos dias da quarentena que são quase sempre longos?

Tudo isso e nada disso.

Me dei conta que esperava um dia chegar naqueles lugares altamente tecnólogicos, práticos, desafiadores. Futuro e passado valorizados num ambiente incrivelmente organizado e ao mesmo tempo humano. Deep Space Nine, Star Trek, holodeck literário... café klinglon hahahahahaha...

Mas, vocês sabem, aquilo que não está no pensamento, está na realidade de maneira avassaladora.

E, nessa semana, a bunda cai de cara na minha realidade!

Depois das primeiras gargalhadas, risos, likes nas páginas mais criativas e hilárias, a realidade!

Como disse Ricardo Araújo Pereira, agora mesmo, naquele jornal, "A metáfora, a gente ainda aguenta - que remédio, já nos habituamos. Mas a literalidade, amigos, já parece crueldade acima do que estamos preparados para perguntar." ( Ilustrada, C4, 18 out 2020 )

A bunda suja, jogada na nossa cara todos os dias. Incêncios, censuras, sandices, ignorância - ela mesma - em toda sua abundância; mortes, doença, abandono, despejos, desemprego, desvios. 

Como disse Fernanda Torres, agorinha, " Enquanto o mundo adentra o antropoceno, era geológica marcada pela força tectônica da humanidade, o Brasil encara o rouboceno, sem nenhuma perspectiva de virada." ( Ilustrada, C3, 18 out 2020 )

A sujeira.

O amigo aconselha, "é distópico, ria um pouco, para não pirar"

A filha diz, " desliga, para não adoecer"

A mãe diz, "ore, de ora em ora deus melhora"

A amiga diz, " meu, que lôco isso"

As feiras literárias virtuais não dão conta. A mesa de literatura italiana não dá conta. 

O Caetano já fez a live dele. O Milton também. O Gil e Gal também. E eles são foda!


Já cantei El dia que me quieras.

Acaricia mi ensueño
El suave murmullo
De tu suspirar.
Como ríe la vida
Si tus ojos negros
Me quieren mirar.

E eu quero música para embalar essa balada que não é do louco poético, é do louco ele mesmo!

Busco um poema:

Se o orifício anal é um olho cego,
que pisca e vai fazendo vista grossa
a tudo que entra e sai, que entala ou roça,
três vezes cego sou. Que cruz carrego! 
(...)
( Soneto 143 Higiênico, Glauco Mattoso )

Busco uma imagem que finalize essas palavras e dou de cara com a bunda ela mesma. Uma bunda vital, cuja existência provou nosso desejo e miséria.



É isso, Ziraldo, não vai acabar!



terça-feira, 6 de outubro de 2020

Sonho muito

 

Sonho muito

Sonho em cortar a Rússia naquele trem entre Moscou e a IasnaiaPoliana de Tolstói. Em sentar-me ao lado de uma passageira elegante e percorrer a Europa, como fez Dostoiévski. Jogar com Dostoiévski.

Sonho em conhecer a montanha chinesa, verde e úmida e receber a correspondência das mãos do velho carteiro que, a pé, vem e vive vida dura e poética.

Sonho em voltar a Paris e tomar um chá naquela confeitaria ao lado de Versailles, de onde sairei com um pacote perfumado de doces, para saborear à noite no quarto do hotel.

Sonho com a passeata, chamada pela Libelu! Ah! Ah! Ah!

E com os sertões e os gatos de Guimarães.

Com o Morro no Rio de Janeiro onde ela, coxa, está, iludida e feliz. Vou subir o morro sem medo, sem tempo e perguntar ao Brás: precisava ser tão cruel?

Trens, montanhas, cidades, movimentos.

Perfumes, pessoas, páginas.

Alma, corpo, alimento.

Sonho.

Iasnaia Poliana é o nome da residência do escritor Leon Tolstói


Acervo da USP conta a trajetória de Guimarães Rosa