Descendo a Rua Corondá, na Vila
Marieta.
Lado esquerdo. Casa bonita com
caquinhos de cerâmica, uma mãe, filhos – uma menina e um menino. Eu adorava
olhar, pelo muro baixo, aquele chão de caquinhos de cerâmica. Era como se as
pessoas que moravam ali fossem tão bonitas quanto aquele chão.
Lado direito. Uma casa
misteriosa. Um jardim selvagem... folhas e arbustos entrelaçados. Eu sentia
medo. Lá morava alguém que conhecia as artes misteriosas da adivinhação e dos
chás que resolvem problemas insolúveis. Uma parede descascada, verde ou qualquer
coisa parecida com musgo; água corrente misturada ao lixo da cozinha... dava
medo e curiosidade. Algumas vezes, tinha a impressão de que seria raptada por algo
que eu não controlaria... alguém, alguma coisa, uma força do outro mundo.
Perfeito para a imaginação de uma menina solitária.
Lado esquerdo. A senhora parecia
saída de um conto da Mamãe Ganso. Criava patinhos, tinha uma lagoa artificial
no fundo do quintal, vendia ovos e um licor de anis - anisete – cujo sabor
ainda sinto, quando fecho os olhos. Lenço xadrez na cabeça, avental branco,
sotaque “arastado” . Eu adorava quando
era mandada para comprar ovos naquela casa. Foi de lá que veio a pata
Frederica, cuidadosamente criada em uma gaiola. Frederica, a mãe de uma dúzia
de patos e patas violentamente assassinados em uma noite cheia de som e fúria,
por um bando de cachorros desalmados.
Lado direito. A casa da velhinha
que sustentava a família, vendendo “carça, tarco, lenço” o que precisássemos
para uma vida mais delicada e perfumada. As filhas tinham filhos aos montões e
ela sempre dizia: “aquela sem vergonha da Virma teve mais um... quer comprar
uma carça para ajudar?” E é claro que minha mãe comparava... solidariedade na
rua Corondá nem se questionava, se praticava.
Lado esquerdo. “Os intocáveis”
Uma família que tinha carros pretos, bonitos. O avô – cara de chefão – sentava-se
na varanda e ficava de olho na meninada. Ai daquele que mexesse em algum
daqueles chevrolets pretos, brilhantes, lindos, estacionados na frente da casa!
Na casa d’Os intocáveis, além dos velhos, moravam o filho, a mulher e os netos.
Para a Marcinha, fui a primeira professora... ensinei a escrever! Essa era uma
casa com muitas histórias.
Lado direito. Dona Augusta, a
portuguesa que tinha uma horta verdinha, cheirosa... usava um coque no alto da
cabeça. Uma verdadeira Eça de Queirós. Faz parte da minha memória afetiva e
olfativa o feijão cozido com folha de louro que ela passava, pelo muro, em um caldeirãozinho um pouco amassado, mas
bem areado. Dona Augusta e seu Augusto... videiras, figueiras, manjericão,
galinhas e patos no fundo do quintal.
Lado esquerdo. A portuguesa que
cortava a bola dos meninos. Na televisão dela, vi, assustada, a notícia da
morte de John Kennedy.
Lado direito. A mulher do
motorista. Dona Terezinha e seus filhos. Dona Mariazinha e as gelatinas na hora
da televizinha... Dona Doroty – a bonequinha do disco – toda empertigada,
subindo a Rua Corondá com as suas cinco meninas... todas rosas: Rosicler, Roseli,
Rosangela, Rosana, Rosimeire. Com algumas eu brincava; com outras, brigava.
Lado esquerdo. O motorista de
táxi, com chapéu, terno e gravata. Levava os doentes às emergências, as noivas
aos casamentos, os parentes ao velório. Uma sobrinha, Regina, era como uma
rainha para mim... gordinha, bonita, tinha a boneca mais bem vestida de todas,
usava uma colônia que tinha o seu nome: Regina. Logo ao lado, a casa das moças
ousadas. A Sueli – que nome de devassa -
e a Sulemar – exótica. Elas saiam à noite!!! Do muro ao lado, eu e minha
melhor amiga – Maria Luisa – espiávamos e morríamos de curiosidade.
Lá no final, ficava a chácara... meu irmão era o queridinho da dona. Ia capinar e voltava com uma cesta cheia de frutas! De lá também tenho lembranças de frescor, chuva, terra, chão batido, pés descalços.
Todos se conheciam na Rua
Corondá. Íamos juntos para a escola. Comprávamos fiado na vendinha da rua de
trás e o japonês era camarada com os possíveis contratempos daqueles tempos. Na
escola, a Dona Teresinha, cantava parabéns para as aniversariantes.
No quintal da Rua Corondá, 35,
aprendi ética, convivência social, o conceito de igualdade, o valor da
solidariedade. Convivi com pessoas, vindas de lugares diferentes, que alimentaram
a imaginação de menina sonhadora. Tive vontade de conhecer todos os lugares de
onde meus vizinhos tinham vindo. Tive vontade de entender cada jeito de viver,
de experimentar cada sabor, de ouvir cada história.
A Rua Corondá foi uma das escolas
mais importantes que frequentei.
Ainda me vejo, descendo correndo a rua, na tarde de sábado, depois do encontro com meu pai. Corria, feliz de ter ido ao cinema, ao museu, ao Jardim da Luz... durante a semana teria muito de contar para a Maria Luisa que morava quase em frente a casa da Rua Corondá, 35!