quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Rua Corondá, 35.



Descendo a Rua Corondá, na Vila Marieta.
Lado esquerdo. Casa bonita com caquinhos de cerâmica, uma mãe, filhos – uma menina e um menino. Eu adorava olhar, pelo muro baixo, aquele chão de caquinhos de cerâmica. Era como se as pessoas que moravam ali fossem tão bonitas quanto aquele chão.
Lado direito. Uma casa misteriosa. Um jardim selvagem... folhas e arbustos entrelaçados. Eu sentia medo. Lá morava alguém que conhecia as artes misteriosas da adivinhação e dos chás que resolvem problemas insolúveis. Uma parede descascada, verde ou qualquer coisa parecida com musgo; água corrente misturada ao lixo da cozinha... dava medo e curiosidade. Algumas vezes, tinha a impressão de que seria raptada por algo que eu não controlaria... alguém, alguma coisa, uma força do outro mundo. Perfeito para a imaginação de uma menina solitária.
Lado esquerdo. A senhora parecia saída de um conto da Mamãe Ganso. Criava patinhos, tinha uma lagoa artificial no fundo do quintal, vendia ovos e um licor de anis - anisete – cujo sabor ainda sinto, quando fecho os olhos. Lenço xadrez na cabeça, avental branco, sotaque “arastado” . Eu adorava  quando era mandada para comprar ovos naquela casa. Foi de lá que veio a pata Frederica, cuidadosamente criada em uma gaiola. Frederica, a mãe de uma dúzia de patos e patas violentamente assassinados em uma noite cheia de som e fúria, por um bando de cachorros desalmados.
Lado direito. A casa da velhinha que sustentava a família, vendendo “carça, tarco, lenço” o que precisássemos para uma vida mais delicada e perfumada. As filhas tinham filhos aos montões e ela sempre dizia: “aquela sem vergonha da Virma teve mais um... quer comprar uma carça para ajudar?” E é claro que minha mãe comparava... solidariedade na rua Corondá nem se questionava, se praticava.
Lado esquerdo. “Os intocáveis” Uma família que tinha carros pretos, bonitos. O avô – cara de chefão – sentava-se na varanda e ficava de olho na meninada. Ai daquele que mexesse em algum daqueles chevrolets pretos, brilhantes, lindos, estacionados na frente da casa! Na casa d’Os intocáveis, além dos velhos, moravam o filho, a mulher e os netos. Para a Marcinha, fui a primeira professora... ensinei a escrever! Essa era uma casa com muitas histórias.
Lado direito. Dona Augusta, a portuguesa que tinha uma horta verdinha, cheirosa... usava um coque no alto da cabeça. Uma verdadeira Eça de Queirós. Faz parte da minha memória afetiva e olfativa o feijão cozido com folha de louro que ela passava, pelo muro,  em um caldeirãozinho um pouco amassado, mas bem areado. Dona Augusta e seu Augusto... videiras, figueiras, manjericão, galinhas e patos no fundo do quintal.
Lado esquerdo. A portuguesa que cortava a bola dos meninos. Na televisão dela, vi, assustada, a notícia da morte de John Kennedy.
Lado direito. A mulher do motorista. Dona Terezinha e seus filhos. Dona Mariazinha e as gelatinas na hora da televizinha... Dona Doroty – a bonequinha do disco – toda empertigada, subindo a Rua Corondá com as suas cinco meninas... todas rosas: Rosicler, Roseli, Rosangela, Rosana, Rosimeire. Com algumas eu brincava; com outras, brigava.
Lado esquerdo. O motorista de táxi, com chapéu, terno e gravata. Levava os doentes às emergências, as noivas aos casamentos, os parentes ao velório. Uma sobrinha, Regina, era como uma rainha para mim... gordinha, bonita, tinha a boneca mais bem vestida de todas, usava uma colônia que tinha o seu nome: Regina. Logo ao lado, a casa das moças ousadas. A Sueli – que nome de devassa -  e a Sulemar – exótica. Elas saiam à noite!!! Do muro ao lado, eu e minha melhor amiga – Maria Luisa – espiávamos e morríamos de curiosidade.
Lá no final, ficava a chácara... meu irmão era o queridinho da dona. Ia capinar e voltava com uma cesta cheia de frutas! De lá também tenho lembranças de frescor, chuva, terra, chão batido, pés descalços.
Todos se conheciam na Rua Corondá. Íamos juntos para a escola. Comprávamos fiado na vendinha da rua de trás e o japonês era camarada com os possíveis contratempos daqueles tempos. Na escola, a Dona Teresinha, cantava parabéns para as aniversariantes.
No quintal da Rua Corondá, 35, aprendi ética, convivência social, o conceito de igualdade, o valor da solidariedade. Convivi com pessoas, vindas de lugares diferentes, que alimentaram a imaginação de menina sonhadora. Tive vontade de conhecer todos os lugares de onde meus vizinhos tinham vindo. Tive vontade de entender cada jeito de viver, de experimentar cada sabor, de ouvir cada história.
A Rua Corondá foi uma das escolas mais importantes que frequentei.
Ainda me vejo, descendo correndo a rua, na tarde de sábado, depois do encontro com meu pai. Corria, feliz de ter ido ao cinema, ao museu, ao Jardim da Luz... durante a semana teria muito de contar para a Maria Luisa que morava quase em frente a casa da Rua Corondá, 35!

6 comentários:

  1. Todos temos as nossas "ruas Corondás", né? Um beijo, meu bem

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. ... e ainda bem! É dela que somos feitas, não é?! Beijos...

      Excluir
  2. As doces lembranças de sua infância, me fizeram voltar no tempo. Bateu saudade.

    ResponderExcluir
  3. Delícia viajar para a minha infância através do seu texto. Tínhamos vizinhos que moravam em casas e a rua para brincar, que também era frequentada pelos mascates que nos alegravam com seus doces e com mercadorias diversas.

    ResponderExcluir