quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Comida para quem precisa... memórias de uma menina gulosa!

A D.ª Augusta passava um caldeirãozinho de feijão, temperado com uma folha de louro, por cima do muro do quintal. Esse gesto está tão claramente desenhado na minha memória, assim como o perfume daquele feijão que tantas vezes nos deu de comer. Éramos duas crianças em casa, esperando a mãe voltar do serviço e o feijão do caldeirãozinho era fundamental. Que delícia, esticar o corpo, diante do muro alto, entrever a parreira cheia de cachos de uva pequena, dura, verdinha e azeda. Esticar as pernas e ver aquela figueira, a horta de couves e tomates. Sentir o cheiro gostoso que ficava depois que seu Augusto regava aquela plantação que tanto me dava prazer. O feijão vinha, às vezes, quentinho, com um pedaço de pão. Refeição completa! É um sabor que não esqueço e nunca vou esquecer. Boa lembrança da infância na Rua Corondá nº 35.

Deste mesmo endereço, eu saía toda manhã, para ir ao grupo escolar. Tomava café, comia o pão com margarina Saúde.
Um dia da semana, tinha feira na “rua de trás” e eu adorava passear pela feira, antes de descer o morrinho, para ir ao Theodomiro Emerique. Passava a mão nas roupas penduradas na barraca de roupa, gostava de sentir o cheiro molhado na barraca de cheiro verde e da barraca de bananas, com aqueles amarelos e verdes e pintas marrons - bananas tão saborosas. Os japoneses já me conheciam... tinha uma amiga japonesa, filha de donos de uma banca de bananas, que morava perto da minha casa. O depósito de bananas com seu úmido perfume de fruta me deixava muito feliz. De vez em quando, ganhava uma banana para levar de lanche.

Um dos episódios de que me lembro bem, desta passagem alegre pela feira, foi o dia em que, finalmente, ganhei um pedaço de linguiça defumada, para juntar ao meu lanche daquele dia feliz! Eu sempre passava pela barraca dos queijos e linguiças, quase sonhando, quase sendo levada por aquele perfume defumado e gostoso de coisas impossíveis de ter. O dono da barraca deve ter percebido que aquele dia, em especial, eu estava com uma vontade danada. Ele, gentilmente, corta um gomo daquela gostosura e me dá de presente. Sai dali, pulando feito um cãozinho feliz, com a cauda abanando, mostrando a todo mundo que eu tinha ganhado um premio e tanto.

Hoje, pensando neste texto que escrevo agora, imaginei que se ele deu aquele pedaço de iguaria, sem pensar, só por dar, ou se ele pensou “coitadinha, parece um cãozinho faminto”... não fez a mínima diferença. Eu estava mesmo, como um cãozinho feliz e acho que essa é uma das expressões mais perfeitas de felicidade. Escrevo isso, de coração leve...o que aliás, sempre tive em relação a essa infância, aparentemente difícil.

Na “rua de trás” ficava a venda do japonês que vendia na caderneta. Quantas vezes, ele quebrou o galho das mulheres da Rua Corondá. Quantos litros de óleo de tambor vendeu, para que fritássemos os ovos das patas e galinhas que tínhamos em casa. Que trato comercial fabuloso era aquele. No começo do mês, todas as mães iam à vendinha do japonês pagar a conta. Às vezes saldando tudo; às vezes, deixando um restinho para o mês que vem.

Quando no sábado de ver o pai, meu pai me dava uma mesadinha, a primeira coisa que fazia, na segunda feira, era passar na venda do japonês e pedir um lanche para levar à escola. Ouço, perfeitamente, a serra da faca, passando naquele filão tostadinho que acabara de chegar à venda. O filão era posto na vitrine, forrada de papel marrom, cheia de migalhas. Ele serrava o pão e eu já ficava alegre, porque, em seguida, vinham as fatias de mortadela! Sem a marca, que hoje parece fazer tanta diferença. Era uma mortadela untuosa, vermelhinha, cheirosa. E como combinava com aquele pão!

Na escola, às vezes tinha pão com carne moída ou arroz doce quentinho e com canela – ou será que era só o perfume da canela que me inebriava? Hora do recreio, hora em que víamos a diferença de classe. Lanches bem embrulhados, saindo de belas lancheiras de metal. Lanches simples, saindo de lancheiras de plástico. Sucos de laranja, laranjadas bem clarinhas e muito doces. Um docinho de sobremesa... um nada que dava água na boca.

No tempo seguinte da minha infância, no tempo da Rua Heloísa Penteado, rua de nome bonito, as lembranças de um lanche de bife à milanesa, na tarde de domingo, sempre me acompanharão. A mãe da amiga de quintal, dona do nosso cômodo e cozinha era quem preparava esse lanche divino. Ela também nos abastecia com as sobras da semana. Como cozinhava bem nossa locadora! Quantas vezes, vinham docinhos de uma festa em que não estive, quantas vezes vinham pedaços de torta do café da tarde! Tudo uma delícia!

A lata de brigadeiro na casa do meu amigo de classe na quinta série! Inesquecível! Ele era o menino mais bonito da sala e eu me lembro de quando fomos visita-lo, porque ficou acamado com hepatite. Quando tivemos permissão da visita, a mãe para nos agradar, nos ofereceu brigadeiro, saindo de uma lata enorme. Eu ficava só pensando, quem faz tanto brigadeiro só para ter em casa e oferecer aos amigos do filho deve ser uma pessoa muito boa.

Memórias gustativas, memórias afetivas.

Minha infância e adolescência de menina que viveu sempre com pouco, não são memórias tristes. São memórias de solidariedade, de compartilhamento, de amizade e percepção do mundo, por meio de uma das coisas mais importantes para a humanidade. Pão para quem tem fome. Minha fome era uma fome infantil e alegre. 

Agradeço a todos que a saciaram!

É isso!


17 comentários:

  1. Perfumes, sabores, imagens...veio tudo em minha mente lendo seu texto delicioso...Pensei nos sonhos da padaria, do quebra-queixo do Seu João e até da sopa de fubá com couve de minha mãe que arrisquei fazer outro dia...Amei demais essas lembranças.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sonhos de padaria e quebra queixo! Viva a nossa infância! Obrigada pela leitura, Marcos!

      Excluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  3. Consegui vê-la em cada cenário! Deu até pra sentir o gosto da mortadela. Texto gostoso que me fez lembrar do café moído na hora na padaria. Eu sempre ia correndo comprar.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Conseguiu mesmo, Lili? Fui uma menina feliz, no meio de uma batalha dura que minha mãe travava todos os dias! Café moído na hora da padaria... delícia pura!

      Excluir
  4. Que delícia de leitura. Pensei que só eu pedia à minha mãe para fazer um bife a milanesa a mais no jantar, para que eu pudesse levá-lo no dia seguinte, no meio de duas fatias de bengala, para a hora do lanche na escola, que era quase já o almoço.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Delícia, não é Olivia! Nossas lembranças da infância são um bem muito precioso! É, afinal, quem somos de verdade!

      Excluir
  5. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  6. Amei!!Memórias gustativas, afetivas e emocionais!! Quem mais é feliz além do cachorrinho abanando o rabo??...diria que foi uma época de pureza...as nossas percepçoes eqto crianças sao puras distante de qualquer dificuldade!! Lindo texo!! Tocou meu coraçao!! bjo

    ResponderExcluir
  7. Ainda bem que fomos crianças e não esquecemos, não é Vânia?

    ResponderExcluir
  8. Que delícia de texto!

    ResponderExcluir
  9. costumo dizer sempre de lembranças do passado eranos felizes sera que sabia-mos acho que sim

    ResponderExcluir
  10. Como deve ter sido incrivei a busca dessas memórias! Um presente para nós, o seu texto. Daqui senti o cheiro da linguiça, da mortadela, do feijãozinho com a folha de louro.
    É um presente textos assim!

    ResponderExcluir
  11. Que legal... É muito bom, quando um texto nos envolve assim, não é

    ResponderExcluir
  12. Tempos das brincadeiras de rua, tempos da solidariedade, Suas memórias nos traz à tona momentos significativos da nossa infância.

    ResponderExcluir