Minha mãe tem 93 anos, mas isso vocês já sabem.
O que vocês, talvez, não saibam é que até aos 50 anos ela era Católica, Apostólica Romana. Isso quer dizer que de Filha de Maria, Verônica da procissão até a vergonha que ela tinha de comungar, depois de ter sido largada pelo marido, foi um longo percurso.
Está explicado minha foto de primeira comunhão na semana das crianças. Fiz o catecismo, fui da juventude católica - costumo brincar que fui garçonete da Santa Ceia - e até hoje, com as devidas mudanças, acredito em eficácia simbólica. Eficácia simbólica é um conceito maravilhoso que aprendi com uma professora de sociologia da USP. Me ajuda muito a entender, porque chorei em Assis, em frente à Santa Teresa em êxtase e na Igreja do Bom Fim.
Bom...
Quando ela fez a conversão ( parece coisa de carro a gas ) para o evangelismo, fiquei de pé atrás. Mas, suspirei e entendi perfeitamente. Era um período difícil, para aquela mãe que agora estava sozinha, com os dois filhos casados e fora de casa. Algo, muito especial, deveria preencher aquele vazio e os Batistas foram muito importantes nisso. Entendi também quando ela me disse, depois de alguns anos de Batista que já estava velha demais para duvidar e, portanto, eu podia parar de questionar os dogmas em que ela acreditava agora. Sei que duvidar é tarefa humana e ela duvida. Mas, em termos de religião, estava cansada e os hinos da Batista eram lindos o suficiente, para enfeitar seus domingos.
Ela lê a Biblia todo ano. Inteirinha, anotando, parando para entender e comentando comigo. Eu sigo, depois de alguma trégua, questionando um ponto ou outro que acho demais da conta de exagero do autor.
Mas ( turning point ) ela, além de perseguir a fé religiosa que a sustente, não deixa de perseguir o conhecimento, a leitura diversificada, as ideias contrarias à maioria, o questionamento do pensamento único. Por exemplo, leu depois de mim o livro, O último profeta, de Heschel.
Isso significa que me impulsionou sempre a estudar, a amparar minha formação, a felicitar minha carreira. Significa que sempre me achou inteligente e teve orgulho de mim ( é evidente que o filho de quem ela mais gosta é meu irmão e essa é nossa piada interna, só nossa, não é irmão? ).
Tem orgulho das leituras que faço, dos projetos intelectuais dos quais participei, das ex-alunas que sempre me presenteiam com palavras carinhosas de reconhecimento do trabalho que fiz em sala de aula.
O que ela tem visto é que todo esse empenho em me empurrar para o conhecimento, transformou sua filhinha em um ser pensante e mais questionador do que ela tem visto, nesses anos todos, entre os que professam a sua religião.
Eu questiono as irmãs. Eu questiono o pastor. Eu chego na casa dela e xingo o cretino que manipula as mentes fracas e intelectualmente incapazes que compreender a manipulação. Eu vocifero contra membros da família que, apesar das oportunidades, insistem em não usar as qualidades únicas do cérebro que está preso em suas caixas cranianas.
Tenho tido, ultimamente, profundos episódios de destempero. Quem, em sã consciência, não tem tido, não é mesmo?
Temos debatido política, religião, costumes, mídia conservadora, mídia digital e seus problemas. Hoje mesmo, vou levar a Ilustríssima, que fez uma matéria a respeito de religão e poder. Tenho certeza de que ela vai ler, suspirar e comentar comigo.
Quando me exalto, ela me olha com aqueles olhos que já foram grandes e hoje são pequeninos e aí eu me toco de que, talvez, esteja exagerando.
Afinal, ela já me disse, há muito tempo, que não está na idade de duvidar, questionar...
Fico uns dois dias calma, mas o monstro criado e alimentado na USP, na Biblioteca da Letras, nas livrarias da vida, nas salas de aula, nos encontros com amigos e amigas piramidais, esse monstro está à solta. E meto boca na minha mãe de 93 anos.
É quase só com ela, com quem posso falar no dia a dia.
As filhas, me entendem, mas são filhas e não tem a obrigadação que minha mãe tem de me escutar. Uau!!!
Os amigos, devido a pandemia ( ô conceito pequeno, para tudo o que nos aconteceu ), tenho encontrado quase que só virtualmente e eles também estão destemperados.
O irmão... bem... o irmão é o irmão. A quem eu amo e respeito, a despeito de tudo.
Mas, minha mãe de 93 anos. Ah, não! Não mesmo!
Ela foi a culpada de eu não ser uma dona de casa tradicional, uma vidrada em BBB, uma consumidora de sertanojo, uma seguidora de influencers de quinta categoria, uma baba ovo de pastor de empresa religiosa de entretenimento, uma leitora de livro único; ou pior, uma leitora do mesmo livro, escrito por "autores diferentes".
Sua culpa, mamã!
Agora aguenta!
É isso!