quarta-feira, 24 de junho de 2020

Este texto poderia chamar-se Banheiros ou Saneamento Básico.

Eu sempre gostei de olhar, naquelas revistas de decoração, as fotos daqueles banheiros sofisticados...




Na Rua Coronda nº 35, eu morei os primeiros anos da vidinha de menina. Era uma casa velha que tinha até um fogão à lenha no rancho. Quarto, sala, cozinha, banheiro fora, um rancho, onde ficava o tanque e o tal fogão à lenha.
Aquele banheiro me dava medo. Parecia que tudo ia desabar. Que o chão ia se abrir e eu ia cair. Não era uma fossa sanitária, coisa que me amedronta até hoje. Era banheiro com pia pequena, vaso sanitário, descarga de cordinha, chão de cimento. Tudo ali parecia velho e encardido. Devia ser mesmo. Casa velha do tempo afonsino. Imagino que o aluguel era barato para que minha mãe pudesse continuar ali, mesmo depois de meu pai partir para outras aventuras familiares. Ah, a dona da casa era uma espanhola bastante solidária.

Por que me lembrei do banheiro da casa velha e de outros banheiros? Afinal...

Hoje, foi dia de faxinar o banheiro. Lavar esfregar, aromatizar... Enquanto estava na lida, me lembrei da casa velha, da sensação de medo que hoje aparece nos pesadelos, quando estou um pouco preocupada.

Lembrei-me do banheiro da Rua Heloisa Penteado, 190. Casa da adolescência. Também esse era fora do pequeno cômodo e cozinha e tinha um agravante. Bem menor, tinha de atravessar o quintal para chegar até lá . Era porta da cozinha com porta do banheiro e a gente passava correndo nos dias de chuvisco e de frio. Bruuu... tomar banho quente e correr até a cozinha. Quantas vezes fiquei resfriada depois dessa corridinha? E teve aquele episódio engraçado da toalha caindo ( porque, às vezes, eu não levava a roupa e me enrolava na tolha, pensando que a corridinha rápida me salvaria de um possível acidente )! Vergonha! A vizinha viu! Ai, minha nossa! Chorei, mas passou... agora, eu rio!

Quando me casei, depois da Heloisa Penteado, fui morar na Praça da Árvore numa casinha de boneca. O banheiro era de boneca também... primeiro banheiro dentro de casa! Não era de boneca porque era bonitinho, mas porque era bem pequeno. Aqueles em que a gente pode sentar no vaso para lavar os pés, enquanto toma banho. 

E quando compramos nosso primeiro apartamento? A alegria de ver aquele banheirinho azulejado, com box, separando o chuveiro? Não era mais do que isso. E eu lembro, quando fui arrumar a casa para a mudança e ri de felicidade ao lavar o banheiro pela primeira vez! Meu banheiro do meu apartamento – quer dizer, depois dos 17 anos de financiamento, seria meu.

Hoje, enquanto lavava a banheira, esfregava o box, até os banheiros descritos nos livros que li foram surgindo na memória. Dois eles, especialmente...

O banheiro do Luis Silva em Angústia, de Graciliano Ramos.
“De ordinário fico no banheiro, sentado, sem pensar, ou pensando em muitas coisas diversas uma das outras, com os pés na água, fumando, perfeitamente Luis Silva”.
Graciliano segue descrevendo o outro banheiro separado por uma parede do banheiro de Luis Silva. Como ele pensa em Marina, no chuveiro. Que sensação que a leitura me causou. Hoje veio, de primeira, na lembrança dos banheiros.

E o banho que Esmeralda toma, quando consegue sua própria casinha. Esmeralda é a moça que descreve a vida difícil de abandono. Esmeralda deu nome ao livro Esmeralda, porque não dancei . Um relato doído, de uma vida sofrida.
“Eu continuava morando na mesma pensão. Aquilo era um lixo: o quarto fedia à carniça, tinha um colchão horrível, a cozinha era cheia de baratas. Parecia uma casa abandonada. O banheiro era horrível, cheio de bichos.”
Mas a descrição do primeiro banho, que abre o relato é pura alegria. Nunca esqueci.
“Como é gostoso um chuveiro. O chuveiro vai limpando a gente por dentro e por fora. Nunca tive um chuveiro. Nunca tive uma cama e uma casa de verdade. Agora, sim, tenho um chuveiro, tenho uma cama, tenho minha casa. (... ) Hoje tomo banho na minha casa...”.

O banheiro e sua dimensão humana... psicanalítica, social, afetiva. 

Então... são essas coisas em que penso, enquanto faxino meu banheiro branquinho.

Quantas pessoas tem essa mesma felicidade? Essa mesma sensação de acolhimento e decência que só um bom banheiro pode dar? Antes de ficar triste, pensando nisso, hoje, só hoje... quero ficar alegre e dizer que ao terminar a faxina, coloquei uma velinha de lavanda em cima da pia, tomei um bom banho e resolvi escrever.

A invenção mais importante do mundo proporcionou o descarte mais eficiente de dejetos, diminuindo doenças e aumentando a expectativa de vida nas cidades.
Embora haja registros de latrinas desde 3.100 a.C., a primeira privada foi criada em 1596 pelo inglês John Harington. Ele fez duas unidades: uma para ele e outra para a rainha Elizabeth 1ª.

A ideia não pegou à época e só em 1775 o escocês Alexander Cumming patenteou a privada moderna, já visando o escoamento num sistema de esgoto. 
Fonte: Clean: A History of Personal Hygiene and Purity, de Virginia Smith 




É só isso mesmo...

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Ainda lendo



Minha amiga Paula é companheira de aventuras do conhecimento. Vamos juntas ao Seminário Internacional do Sesc há uns bons anos. Nesse último, o tema era Democracia em Colapso – ai, ai, ai! Foi em outubro de 2019. Faz tanto tempo, sabe?
Então, entramos nessa vertigem temporal e tenho lido algumas coisas legais. Terminei a Montanha Mágica, o Philip Roth, a Conceição Tavares. É pouco, se penso no tempo. É muito se penso nas circunstâncias.
Então, ela que é uma leitora muito mais ávida do que eu, liga e pergunta se eu já havia lido Uma autobiografia, de Angela Davis, que compramos no Democracia em Colapso. Não, Paula, ainda não! E ela, “estou lendo, chorei e tal, naquela parte...” Vou ler, Paula, estou terminando a Montanha e vou ler.
Comecei e já terminei. Lido em 2020, ano da Covid-19.

É assim, que agora anoto no livro. Penso nas pessoas que irão comprar esse meu volume no sebo. Quero que tenham essa referência.
Lendo, com o lápis na mão, grifando, anotando nas margens, pensando em mim mesma, nos futuros leitores , me envolvi completamente com a personalidade, a pessoa e os acontecimentos que Angela Davis descreve.
No prefácio, a frase inicial -  “Eu sou uma mulher negra e revolucionária”  - me coloca no lugar de leitora respeitosa com o imaginário que tinha construído ao longo de tanto tempo. Penso minha própria história bem comedida de jovem em 1970, estudante universitária, trabalhadora, curiosa, sonhadora. Quanto ouvi falar dessa moça, Angela Davis, em tantos lugares diferentes.
Quando descreve a prisão, logo no início da autobiografia, me dá a deixa para a primeira anotação: “As duas primeiras semanas passaram penosamente devagar. Parecia que eu estava presa havia muito tempo. No entanto, assim que a rotina da prisão começou a se impor de modo inexorável, os dias desembocavam imperceptivelmente uns nos outros e parecia haver pouca diferença entre três dias e três semanas.”
Claro que identifiquei quase a mesma disposição do espírito, quando olho em volta e me vejo há três meses aqui em casa. Quase... jamais diria que é a mesma coisa.
Nessa disposição, fui lendo ou, como nós leitores gostamos de dizer para fazer bonito, fruindo cada episódio.
Do preâmbulo da prisão, ela vai para a cronologia da infância, juventude e nos anos 60, a prisão e a luta pela liberdade não só dela, de todos os irmãos e irmãs presos políticos.
Vou descobrindo essa mulher maravilhosa que, a todo momento, ressalta a importância da educação, da formação crítica, da observação e análise de contexto.

O enfrentamento da realidade das crianças negras, postas em uma escola decadente, sem estrutura, suja e abandonada. A agressividade que brota, sem que ninguém consiga deter, nesse ambiente triste e abandonado. A menininha Angela, sente que algo precisa mudar.
Não consigo, por mais que queira, fazer jus ao que ela descreve destes anos. Ficou em mim a sensação de tristeza em lembrar das nossas crianças, abandonadas em escolas sem estrutura. Dos pais que lutam tanto e tão pouco conseguem. O pouco que se fez para mudar isso, o tudo que se fez para desfazer o que já havia sido conquistado. Ela vai tecendo reflexões e me fazendo estabelecer as relações com nossa realidade.
“Continuei a ter minhas dúvidas sobre essa noção de ‘ trabalhe e serás recompensada’. Mas, admito, minha reação não era exatamente objetiva. Por um lado, eu não acreditava inteiramente nisso. Não fazia sentido para mim que todas aquelas pessoas não tinham ‘dado certo’ estivessem sofrendo por causa de falta de ambição e de força de vontade, para construir uma vida melhor para si mesmas. Se isso fosse verdade, então um número enorme de pessoas e nosso povo – talvez a maioria – era de fato preguiçoso incapaz, como as pessoas brancas vivem dizendo”
“Foi então que comecei a entender o verdadeiro significado do subdesenvolvimento: não é algo que justifique utopias. Romantizar a penosa situação das pessoas oprimidas é perigoso e ilusório.”

A jovem Angela no colégio, Angela na universidade.

Os anos de formação acadêmica. A escolha pela Filosofia. Filosofia, a arte de aprender a pensar. Diz tanto dessa revolucionária que vai atrás do conhecimento. Luta pelas bolsas de estudo, pelo direito de viajar, pela oportunidade de vivenciar outras realidades, sem, em nenhum momento, esquecer a sua prioridade. O encontro com Marcuse, Adorno... A luta pela, tão vilipendiada, justiça social. A luta pelo direito de lecionar na universidade, de pertencer ao Partido Comunista.
“O impacto psicológico do anticomunismo nas pessoas comuns dos Estados Unidos é muito profundo. Há alguma coisa a respeito da palavra “comunismo” que, para quem não é esclarecido, evoca não apenas o inimigo, mas também algo imoral, sujo.”

As palavras carregadas de sentidos antagônicos. 

Mulher, negra, revolucionária, comunista, filósofa. Um antagonismo, vindo não da pluralidades de significados, mas do desconhecimento.
Pensei muito na força das palavras, em muitos momentos da leitura. Educação, conhecimento, justiça, dor, história, tensão, amor, comunista... mulher, negra, revolucionária.

Educação, anotei ao lado da seguinte descrição de uma das juradas no caso de acusação de Angela por assassinato, sequestro e conspiração:  (...) ela nos levou de volta ao Arizona, onde aos doze anos, colheu algodão e cortou cebolas. Depois ela disse ‘fui cozinheira de pratos rápidos. E também trabalhei em uma fabrica de sanduiches para aqueles carrinhos que passam... Quando cheguei a San José, fiz trabalho doméstico e trabalhei no Spivey’s como lavadora de pratos’.
Enquanto falava Angela lembra da própria mãe que fez percurso semelhante até à faculdade e possibilidade de dar aulas em uma pequena escola. Tantas histórias semelhantes.

Essas poucas palavras que escrevo aqui nunca darão conta do relato dessa autobiografia.

Emocionante, fundamental. Não sou boa em adjetivos, nem em resenhas.
Sou emocional e é isso que quero deixar registrado, minha emoção de leitora.
É a história dela, a história de tantos. 

Deixo aqui, mais um parágrafo... ia dizer que me fez pensar, mas não é verdade. É um parágrafo forte, importante e eu gostaria que muitos o lessem. É só por isso, que deixo aqui...

“Ansiedades, frustações geradas pelo espectro de uma criança morta de fome convergem nossas mentes e nossos corpos para as necessidades mais imediatas da vida. A arenga do ‘trabalho’, a arenga sobre ‘tornar-se alguma coisa’. Exortações baseadas no medo, um medo criado e sustentado por um sistema que não poderia subsistir sem as pessoas pobres, o exército de reserva de pessoas desempregadas, o bode expiatório. Instintos de sobrevivência corrompidos e desencaminhados por uma estrutura que me força a expulsar meu companheiro desempregado de casa para que assistentes sociais não suspendam aqueles cheques de que preciso para alimentar minha criança faminta.”
(...)

E mais um...

“Não era apenas a repressão política, mas o racismo, a pobreza, a brutalidade policial, as drogas e todo um sem-número de maneiras pelas quais as pessoas negras, pardas, vermelhas, amarelas e brancas da classe trabalhadora eram mantidas acorrentadas à miséria e ao desespero. E não só no Estados Unidos, mas em países como o...”
( escrita em junho de 1974 )

... é isso. Sigo lendo.




terça-feira, 2 de junho de 2020

Quando ela chegou, só falava inglês!



Dezembro de 2008 ela chegou. Vinha de uma vida de abandono, conforme descreveu, dramaticamente, minha filha Thaís.

Eu não queria. Não, de jeito nenhum. Manda para a Bahia. Faz mais de 20 anos que não tenho um animal de estimação. Não, apartamento é injusto para o bichinho. Não, ela vai ficar muito sozinha. Não. Bom, talvez uns dias. Não, só até depois do Ano Novo. Não.
Tá! Fica aqui até resolver com quem essa lindinha vai ficar. Ela está atrás da cadeira do quarto, tremendo de medo. Ah! Tadinha... traz aqui para a sala, para se acostumar com a família. Que fofa! Olhar pidão. Tá tremendo de medo.
O John só falava em inglês com ela! Hi, Sofi! Foi adotada por ele, em uma feira de adoção. Toda cheia de pulgas e carrapatos, quase sem dente. Vinha das ruas, do abandono. Como assim? Tão lindinha! Hi, Sofi! Oi, Sofia! Vai aprendendo a falar português, ok? O John teve de sair do apartamento grande e ir para outro menor. O outro cachorro foi para o verdureiro! Verdureiro, na Paulista?! A Sofia ninguém quis. Bom, a Thais, que trabalhava no apartamento-escritório, tinha certeza de que ela ficaria aqui. 
Tempos bicudos, pedem grandes investidas emocionais. Ganhou o jogo!
E ela ficou mesmo.

Na primeira vez que ficou sozinha em casa, subiu na mesa da cozinha e comeu um frango assado, deixado, ingenuamente, ao deus dará. Teve também aquele pacote de manteiga que apareceu limpinho, lambido com toda vontade.
Mas, antes disso, o episódio da coxa de peru de Natal! Farejada sozinha na cozinha, insidiosamente levada pelo corredor adentro, aparece atravessada naquela boca semi desdentada, com aquele olhar de “para onde vou agora, onde escondo esse tesouro”. Vagabunda!!! É de rua mesmo!
Logo no primeiro passeio me deu um baile, fugiu da coleira, sei lá como! Quase morri de susto! Vagabunda!
E aí, ficamos sócias da Pet da rua de trás! Banho, comida... e tantas outras traquitanas que fomos incorporando. Tudo para deixar a Sofi, mais à vontade, consolada da “vida de abandono”.
Primeira crise veterinária... caiu shampoo no olho, tá vermelho, não abre o olho. Ai, meu deus, o que fazer. Leva na Dr.ª Daniela que é uma querida. Oftalmo de cachorro? Isso existe? Existe. E ela faz um procedimento totalmente estranho. Literalmente, costura o olho da Sofia, com um botão, para recuperar a irritação. Coraline, ela lembra a Coraline!

Deu certo!
Na segunda crise, o tombo do sofá, o deslocamento da patinha, naquela noite em que estava na companhia da minha mãe. Caiu do sofá... chorou de dor e minha mãe não sabia o que fazer, já que estávamos fora de São Paulo. Até que chegamos, minha mãe, que jurava não tomaria conta de cachorro nenhum, para ninguém, passou óleo bento, rezou com a mão na patinha, fez massagem e quase me matou, quando chegamos!
Respeito e dignidade no olhar de ambas

 A pata foi entrando no lugar, com os exercícios de subir e descer ladeira. Optamos por não operar. A Dr.ª Daniela aceitou. E, por anos, a Sofia entrava no Petshop e era recebida como aquela que não precisou operar a pata.
E o tratamento dentário? Em 10 vezes, sem juros... até sonhei que ela estava completamente banguela. Ai, doutor!

Querida por todos! Era a raposinha da vizinhança. A Maria do bar da esquina atravessava a rua para dar um carinho. A meninada do prédio parava o jogo para abraçar e beijar a Sofi que tinha acabado de tomar banho e estava cheirosinha. No passeio, pela manhã ou à tardinha, sempre alguém parava para perguntar de que raça era. Raça? É uma vira de respeito. Nossa, que linda, parece uma raposinha.
Foi tomando conta do território. Daquela primeira noite na lavanderia, passou para o escritório, primeiro na caminha, depois embaixo da bancada; conseguiu subir no sofá (de onde caiu, mas que continuou como um canto aconchegante até há uns meses). A porta do meu quarto parecia a fronteira final, só que não resisti e permiti um tapete na beira da cama, onde ela, nos últimos meses podia ficar acomodada e quentinha, me olhando e me dando bom dia.
Nossa raposinha envelheceu, me ensinando a lidar com a velhice.
Nesses últimos dias, foi nos deixando lentamente. Até o sábado da partida.
Nunca imaginei que sentiria essa tristeza. Essa falta. Não preciso mais colocar o jornal na lavanderia, recolher a sujeira e limpar aquele pedacinho de chão. Não preciso mais deixar a luz do corredor, acesa, para mim mesma saber que ela sabe onde estava indo, quando tinha de tomar água ou fazer xixi no meio da madrugada. Não preciso mais colocar água limpa e comida fresca. Dar a vitamina na boca, cozinhar a batata doce. Levar para o banho e tosa.
Ela foi para o céu de São Francisco. Meu amorzinho. Meu docinho.
Da vida de abandono, ela veio e me disse: “fica firme, nos vamos em frente, todas nós, juntas”.
Mais de dez anos. Dezembro de 2008. Quando ela chegou, só falava inglês.