quarta-feira, 17 de junho de 2020

Ainda lendo



Minha amiga Paula é companheira de aventuras do conhecimento. Vamos juntas ao Seminário Internacional do Sesc há uns bons anos. Nesse último, o tema era Democracia em Colapso – ai, ai, ai! Foi em outubro de 2019. Faz tanto tempo, sabe?
Então, entramos nessa vertigem temporal e tenho lido algumas coisas legais. Terminei a Montanha Mágica, o Philip Roth, a Conceição Tavares. É pouco, se penso no tempo. É muito se penso nas circunstâncias.
Então, ela que é uma leitora muito mais ávida do que eu, liga e pergunta se eu já havia lido Uma autobiografia, de Angela Davis, que compramos no Democracia em Colapso. Não, Paula, ainda não! E ela, “estou lendo, chorei e tal, naquela parte...” Vou ler, Paula, estou terminando a Montanha e vou ler.
Comecei e já terminei. Lido em 2020, ano da Covid-19.

É assim, que agora anoto no livro. Penso nas pessoas que irão comprar esse meu volume no sebo. Quero que tenham essa referência.
Lendo, com o lápis na mão, grifando, anotando nas margens, pensando em mim mesma, nos futuros leitores , me envolvi completamente com a personalidade, a pessoa e os acontecimentos que Angela Davis descreve.
No prefácio, a frase inicial -  “Eu sou uma mulher negra e revolucionária”  - me coloca no lugar de leitora respeitosa com o imaginário que tinha construído ao longo de tanto tempo. Penso minha própria história bem comedida de jovem em 1970, estudante universitária, trabalhadora, curiosa, sonhadora. Quanto ouvi falar dessa moça, Angela Davis, em tantos lugares diferentes.
Quando descreve a prisão, logo no início da autobiografia, me dá a deixa para a primeira anotação: “As duas primeiras semanas passaram penosamente devagar. Parecia que eu estava presa havia muito tempo. No entanto, assim que a rotina da prisão começou a se impor de modo inexorável, os dias desembocavam imperceptivelmente uns nos outros e parecia haver pouca diferença entre três dias e três semanas.”
Claro que identifiquei quase a mesma disposição do espírito, quando olho em volta e me vejo há três meses aqui em casa. Quase... jamais diria que é a mesma coisa.
Nessa disposição, fui lendo ou, como nós leitores gostamos de dizer para fazer bonito, fruindo cada episódio.
Do preâmbulo da prisão, ela vai para a cronologia da infância, juventude e nos anos 60, a prisão e a luta pela liberdade não só dela, de todos os irmãos e irmãs presos políticos.
Vou descobrindo essa mulher maravilhosa que, a todo momento, ressalta a importância da educação, da formação crítica, da observação e análise de contexto.

O enfrentamento da realidade das crianças negras, postas em uma escola decadente, sem estrutura, suja e abandonada. A agressividade que brota, sem que ninguém consiga deter, nesse ambiente triste e abandonado. A menininha Angela, sente que algo precisa mudar.
Não consigo, por mais que queira, fazer jus ao que ela descreve destes anos. Ficou em mim a sensação de tristeza em lembrar das nossas crianças, abandonadas em escolas sem estrutura. Dos pais que lutam tanto e tão pouco conseguem. O pouco que se fez para mudar isso, o tudo que se fez para desfazer o que já havia sido conquistado. Ela vai tecendo reflexões e me fazendo estabelecer as relações com nossa realidade.
“Continuei a ter minhas dúvidas sobre essa noção de ‘ trabalhe e serás recompensada’. Mas, admito, minha reação não era exatamente objetiva. Por um lado, eu não acreditava inteiramente nisso. Não fazia sentido para mim que todas aquelas pessoas não tinham ‘dado certo’ estivessem sofrendo por causa de falta de ambição e de força de vontade, para construir uma vida melhor para si mesmas. Se isso fosse verdade, então um número enorme de pessoas e nosso povo – talvez a maioria – era de fato preguiçoso incapaz, como as pessoas brancas vivem dizendo”
“Foi então que comecei a entender o verdadeiro significado do subdesenvolvimento: não é algo que justifique utopias. Romantizar a penosa situação das pessoas oprimidas é perigoso e ilusório.”

A jovem Angela no colégio, Angela na universidade.

Os anos de formação acadêmica. A escolha pela Filosofia. Filosofia, a arte de aprender a pensar. Diz tanto dessa revolucionária que vai atrás do conhecimento. Luta pelas bolsas de estudo, pelo direito de viajar, pela oportunidade de vivenciar outras realidades, sem, em nenhum momento, esquecer a sua prioridade. O encontro com Marcuse, Adorno... A luta pela, tão vilipendiada, justiça social. A luta pelo direito de lecionar na universidade, de pertencer ao Partido Comunista.
“O impacto psicológico do anticomunismo nas pessoas comuns dos Estados Unidos é muito profundo. Há alguma coisa a respeito da palavra “comunismo” que, para quem não é esclarecido, evoca não apenas o inimigo, mas também algo imoral, sujo.”

As palavras carregadas de sentidos antagônicos. 

Mulher, negra, revolucionária, comunista, filósofa. Um antagonismo, vindo não da pluralidades de significados, mas do desconhecimento.
Pensei muito na força das palavras, em muitos momentos da leitura. Educação, conhecimento, justiça, dor, história, tensão, amor, comunista... mulher, negra, revolucionária.

Educação, anotei ao lado da seguinte descrição de uma das juradas no caso de acusação de Angela por assassinato, sequestro e conspiração:  (...) ela nos levou de volta ao Arizona, onde aos doze anos, colheu algodão e cortou cebolas. Depois ela disse ‘fui cozinheira de pratos rápidos. E também trabalhei em uma fabrica de sanduiches para aqueles carrinhos que passam... Quando cheguei a San José, fiz trabalho doméstico e trabalhei no Spivey’s como lavadora de pratos’.
Enquanto falava Angela lembra da própria mãe que fez percurso semelhante até à faculdade e possibilidade de dar aulas em uma pequena escola. Tantas histórias semelhantes.

Essas poucas palavras que escrevo aqui nunca darão conta do relato dessa autobiografia.

Emocionante, fundamental. Não sou boa em adjetivos, nem em resenhas.
Sou emocional e é isso que quero deixar registrado, minha emoção de leitora.
É a história dela, a história de tantos. 

Deixo aqui, mais um parágrafo... ia dizer que me fez pensar, mas não é verdade. É um parágrafo forte, importante e eu gostaria que muitos o lessem. É só por isso, que deixo aqui...

“Ansiedades, frustações geradas pelo espectro de uma criança morta de fome convergem nossas mentes e nossos corpos para as necessidades mais imediatas da vida. A arenga do ‘trabalho’, a arenga sobre ‘tornar-se alguma coisa’. Exortações baseadas no medo, um medo criado e sustentado por um sistema que não poderia subsistir sem as pessoas pobres, o exército de reserva de pessoas desempregadas, o bode expiatório. Instintos de sobrevivência corrompidos e desencaminhados por uma estrutura que me força a expulsar meu companheiro desempregado de casa para que assistentes sociais não suspendam aqueles cheques de que preciso para alimentar minha criança faminta.”
(...)

E mais um...

“Não era apenas a repressão política, mas o racismo, a pobreza, a brutalidade policial, as drogas e todo um sem-número de maneiras pelas quais as pessoas negras, pardas, vermelhas, amarelas e brancas da classe trabalhadora eram mantidas acorrentadas à miséria e ao desespero. E não só no Estados Unidos, mas em países como o...”
( escrita em junho de 1974 )

... é isso. Sigo lendo.




7 comentários:

  1. O texto acrescenta outras reflexões e comentários à nossa conversa ao telefone. Reportou-me à leitura com os mesmos sentimentos e emoções. Queremos que todo mundo leia para saber mais e experimentar essa sensação de forma mais intensa que a leitura proporciona.

    ResponderExcluir
  2. Quase 50 anos depois as pessoas negras, pardas, vermelhas, amarelas e brancas da classe trabalhadora continuam a ser vilipendiadas pelo mundo afora...Texto importante,amiga.

    ResponderExcluir
  3. Grata pelo belo texto. Era livro na lista das comadres, para este ano. Agora fiquei com baita vontade de ler. E infelizmente sabemos que essa luta é para toda uma vida.

    ResponderExcluir