terça-feira, 2 de junho de 2020

Quando ela chegou, só falava inglês!



Dezembro de 2008 ela chegou. Vinha de uma vida de abandono, conforme descreveu, dramaticamente, minha filha Thaís.

Eu não queria. Não, de jeito nenhum. Manda para a Bahia. Faz mais de 20 anos que não tenho um animal de estimação. Não, apartamento é injusto para o bichinho. Não, ela vai ficar muito sozinha. Não. Bom, talvez uns dias. Não, só até depois do Ano Novo. Não.
Tá! Fica aqui até resolver com quem essa lindinha vai ficar. Ela está atrás da cadeira do quarto, tremendo de medo. Ah! Tadinha... traz aqui para a sala, para se acostumar com a família. Que fofa! Olhar pidão. Tá tremendo de medo.
O John só falava em inglês com ela! Hi, Sofi! Foi adotada por ele, em uma feira de adoção. Toda cheia de pulgas e carrapatos, quase sem dente. Vinha das ruas, do abandono. Como assim? Tão lindinha! Hi, Sofi! Oi, Sofia! Vai aprendendo a falar português, ok? O John teve de sair do apartamento grande e ir para outro menor. O outro cachorro foi para o verdureiro! Verdureiro, na Paulista?! A Sofia ninguém quis. Bom, a Thais, que trabalhava no apartamento-escritório, tinha certeza de que ela ficaria aqui. 
Tempos bicudos, pedem grandes investidas emocionais. Ganhou o jogo!
E ela ficou mesmo.

Na primeira vez que ficou sozinha em casa, subiu na mesa da cozinha e comeu um frango assado, deixado, ingenuamente, ao deus dará. Teve também aquele pacote de manteiga que apareceu limpinho, lambido com toda vontade.
Mas, antes disso, o episódio da coxa de peru de Natal! Farejada sozinha na cozinha, insidiosamente levada pelo corredor adentro, aparece atravessada naquela boca semi desdentada, com aquele olhar de “para onde vou agora, onde escondo esse tesouro”. Vagabunda!!! É de rua mesmo!
Logo no primeiro passeio me deu um baile, fugiu da coleira, sei lá como! Quase morri de susto! Vagabunda!
E aí, ficamos sócias da Pet da rua de trás! Banho, comida... e tantas outras traquitanas que fomos incorporando. Tudo para deixar a Sofi, mais à vontade, consolada da “vida de abandono”.
Primeira crise veterinária... caiu shampoo no olho, tá vermelho, não abre o olho. Ai, meu deus, o que fazer. Leva na Dr.ª Daniela que é uma querida. Oftalmo de cachorro? Isso existe? Existe. E ela faz um procedimento totalmente estranho. Literalmente, costura o olho da Sofia, com um botão, para recuperar a irritação. Coraline, ela lembra a Coraline!

Deu certo!
Na segunda crise, o tombo do sofá, o deslocamento da patinha, naquela noite em que estava na companhia da minha mãe. Caiu do sofá... chorou de dor e minha mãe não sabia o que fazer, já que estávamos fora de São Paulo. Até que chegamos, minha mãe, que jurava não tomaria conta de cachorro nenhum, para ninguém, passou óleo bento, rezou com a mão na patinha, fez massagem e quase me matou, quando chegamos!
Respeito e dignidade no olhar de ambas

 A pata foi entrando no lugar, com os exercícios de subir e descer ladeira. Optamos por não operar. A Dr.ª Daniela aceitou. E, por anos, a Sofia entrava no Petshop e era recebida como aquela que não precisou operar a pata.
E o tratamento dentário? Em 10 vezes, sem juros... até sonhei que ela estava completamente banguela. Ai, doutor!

Querida por todos! Era a raposinha da vizinhança. A Maria do bar da esquina atravessava a rua para dar um carinho. A meninada do prédio parava o jogo para abraçar e beijar a Sofi que tinha acabado de tomar banho e estava cheirosinha. No passeio, pela manhã ou à tardinha, sempre alguém parava para perguntar de que raça era. Raça? É uma vira de respeito. Nossa, que linda, parece uma raposinha.
Foi tomando conta do território. Daquela primeira noite na lavanderia, passou para o escritório, primeiro na caminha, depois embaixo da bancada; conseguiu subir no sofá (de onde caiu, mas que continuou como um canto aconchegante até há uns meses). A porta do meu quarto parecia a fronteira final, só que não resisti e permiti um tapete na beira da cama, onde ela, nos últimos meses podia ficar acomodada e quentinha, me olhando e me dando bom dia.
Nossa raposinha envelheceu, me ensinando a lidar com a velhice.
Nesses últimos dias, foi nos deixando lentamente. Até o sábado da partida.
Nunca imaginei que sentiria essa tristeza. Essa falta. Não preciso mais colocar o jornal na lavanderia, recolher a sujeira e limpar aquele pedacinho de chão. Não preciso mais deixar a luz do corredor, acesa, para mim mesma saber que ela sabe onde estava indo, quando tinha de tomar água ou fazer xixi no meio da madrugada. Não preciso mais colocar água limpa e comida fresca. Dar a vitamina na boca, cozinhar a batata doce. Levar para o banho e tosa.
Ela foi para o céu de São Francisco. Meu amorzinho. Meu docinho.
Da vida de abandono, ela veio e me disse: “fica firme, nos vamos em frente, todas nós, juntas”.
Mais de dez anos. Dezembro de 2008. Quando ela chegou, só falava inglês.

 






10 comentários:

  1. Amiga quwriday. Chorei tantão. Tô chorando. Mal consigo enxergar o teclado do celular. Caramba! Seu texto é belíssimo. É triste. É alegre. Tem humor, dor, vida.
    Lembrei da Nina. Foi tudo tão parecido. Foi também uma vida de abandono. Foi também uma vida de rainha, como dizia meu Pepi. E esses bichinhos mexem imensamente com quem já é bem humano. Acho que é por isso que dizemos não. Mas os filhos sabem que o nosso não é sim. E nós também sabemos.
    Esse texto precisa circular.

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  2. Nossa também tô em prantos! Uma vida,né minha amiga? Lindo seu texto como sempre. Bj

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  3. Uma vida de carinho. Obrigada pela leitura.

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  4. Estou aqui meio que sentindo o peito rasgar...fazem 7 meses que aceitei receber o nosso Chewbacca (Chewie), ainda meio resistente com a nova rotina, mas já não sei olhar p ele sem suspirar de amor!!! Sofi foi recompensada por tanto amor...certamente partiu com a certeza de missão cumprida ♥️

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    1. Isso mesmo, Vânia! Aproveite bem essa oportunidade de conviver com ele. Brinque, cuide, ria...

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  5. Querida, Lili♥️ é só a manifestação do carinho que recebi!

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  6. Estava ansiosa esperando a sua homenagem à Sofia. Alguns desses momentos acompanhei. Também presencie o carinho que ela tanto recebeu.

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  7. Acompanhou muito não é Paula!? Obrigada por respeitar a presença dela, até se enroscando e latindo para você! ( ela sempre gostou dos nossos amigos )

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