Dezembro de 2008 ela chegou.
Vinha de uma vida de abandono, conforme descreveu, dramaticamente, minha filha
Thaís.
Eu não queria. Não, de jeito
nenhum. Manda para a Bahia. Faz mais de 20 anos que não tenho um animal de
estimação. Não, apartamento é injusto para o bichinho. Não, ela vai ficar muito
sozinha. Não. Bom, talvez uns dias. Não, só até depois do Ano Novo. Não.
Tá! Fica aqui até resolver com
quem essa lindinha vai ficar. Ela está atrás da cadeira do quarto, tremendo de
medo. Ah! Tadinha... traz aqui para a sala, para se acostumar com a família.
Que fofa! Olhar pidão. Tá tremendo de medo.
O John só falava em inglês com
ela! Hi, Sofi! Foi adotada por ele, em uma feira de adoção. Toda cheia de
pulgas e carrapatos, quase sem dente. Vinha das ruas, do abandono. Como assim?
Tão lindinha! Hi, Sofi! Oi, Sofia! Vai aprendendo a falar português, ok? O John
teve de sair do apartamento grande e ir para outro menor. O outro cachorro foi
para o verdureiro! Verdureiro, na Paulista?! A Sofia ninguém quis. Bom, a Thais,
que trabalhava no apartamento-escritório, tinha certeza de que ela ficaria
aqui.
Tempos bicudos, pedem grandes investidas emocionais. Ganhou o jogo!
E ela ficou mesmo.
Na primeira vez que ficou sozinha
em casa, subiu na mesa da cozinha e comeu um frango assado, deixado,
ingenuamente, ao deus dará. Teve também aquele pacote de manteiga que apareceu limpinho,
lambido com toda vontade.
Mas, antes disso, o episódio da
coxa de peru de Natal! Farejada sozinha na cozinha, insidiosamente levada pelo
corredor adentro, aparece atravessada naquela boca semi desdentada, com aquele
olhar de “para onde vou agora, onde escondo esse tesouro”. Vagabunda!!! É de
rua mesmo!
Logo no primeiro passeio me deu
um baile, fugiu da coleira, sei lá como! Quase morri de susto! Vagabunda!
E aí, ficamos sócias da Pet da
rua de trás! Banho, comida... e tantas outras traquitanas que fomos incorporando.
Tudo para deixar a Sofi, mais à vontade, consolada da “vida de abandono”.
Primeira crise veterinária...
caiu shampoo no olho, tá vermelho, não abre o olho. Ai, meu deus, o que fazer.
Leva na Dr.ª Daniela que é uma querida. Oftalmo de cachorro? Isso existe?
Existe. E ela faz um procedimento totalmente estranho. Literalmente, costura o
olho da Sofia, com um botão, para recuperar a irritação. Coraline, ela lembra a
Coraline!
Deu certo!
Na segunda crise, o tombo do sofá, o deslocamento
da patinha, naquela noite em que estava na companhia da minha mãe. Caiu do sofá...
chorou de dor e minha mãe não sabia o que fazer, já que estávamos fora de São
Paulo. Até que chegamos, minha mãe, que jurava não tomaria conta de cachorro
nenhum, para ninguém, passou óleo bento, rezou com a mão na patinha, fez
massagem e quase me matou, quando chegamos!
Respeito e dignidade no olhar de ambas
A pata foi entrando no lugar, com
os exercícios de subir e descer ladeira. Optamos por não operar. A Dr.ª Daniela
aceitou. E, por anos, a Sofia entrava no Petshop e era recebida como aquela que
não precisou operar a pata.
E o tratamento dentário? Em 10 vezes, sem juros... até sonhei que ela estava completamente banguela. Ai, doutor!
Querida por todos! Era a
raposinha da vizinhança. A Maria do bar da esquina atravessava a rua para dar
um carinho. A meninada do prédio parava o jogo para abraçar e beijar a Sofi que
tinha acabado de tomar banho e estava cheirosinha. No passeio, pela manhã ou à
tardinha, sempre alguém parava para perguntar de que raça era. Raça? É uma vira
de respeito. Nossa, que linda, parece uma raposinha.
Foi tomando conta do território.
Daquela primeira noite na lavanderia, passou para o escritório, primeiro na
caminha, depois embaixo da bancada; conseguiu subir no sofá (de onde caiu, mas que continuou como um canto aconchegante até há uns meses). A porta do meu quarto
parecia a fronteira final, só que não resisti e permiti um tapete na beira da
cama, onde ela, nos últimos meses podia ficar acomodada e quentinha, me olhando
e me dando bom dia.
Nossa raposinha envelheceu, me ensinando
a lidar com a velhice.
Nesses últimos dias, foi nos
deixando lentamente. Até o sábado da partida.
Nunca imaginei que sentiria essa
tristeza. Essa falta. Não preciso mais colocar o jornal na lavanderia, recolher
a sujeira e limpar aquele pedacinho de chão. Não preciso mais deixar a luz do
corredor, acesa, para mim mesma saber que ela sabe onde estava indo, quando
tinha de tomar água ou fazer xixi no meio da madrugada. Não preciso mais
colocar água limpa e comida fresca. Dar a vitamina na boca, cozinhar a batata
doce. Levar para o banho e tosa.
Ela foi para o céu de São
Francisco. Meu amorzinho. Meu docinho.
Da vida de abandono, ela veio e me
disse: “fica firme, nos vamos em frente, todas nós, juntas”.
Mais de dez anos. Dezembro de
2008. Quando ela chegou, só falava inglês.
Amiga quwriday. Chorei tantão. Tô chorando. Mal consigo enxergar o teclado do celular. Caramba! Seu texto é belíssimo. É triste. É alegre. Tem humor, dor, vida.
ResponderExcluirLembrei da Nina. Foi tudo tão parecido. Foi também uma vida de abandono. Foi também uma vida de rainha, como dizia meu Pepi. E esses bichinhos mexem imensamente com quem já é bem humano. Acho que é por isso que dizemos não. Mas os filhos sabem que o nosso não é sim. E nós também sabemos.
Esse texto precisa circular.
Só o puro amor, não é? Obrigada pela leitura, Val!
ExcluirNossa também tô em prantos! Uma vida,né minha amiga? Lindo seu texto como sempre. Bj
ResponderExcluirUma vida de carinho. Obrigada pela leitura.
ResponderExcluirE a gente chora cá do outro lado...❤
ResponderExcluirEstou aqui meio que sentindo o peito rasgar...fazem 7 meses que aceitei receber o nosso Chewbacca (Chewie), ainda meio resistente com a nova rotina, mas já não sei olhar p ele sem suspirar de amor!!! Sofi foi recompensada por tanto amor...certamente partiu com a certeza de missão cumprida ♥️
ResponderExcluirIsso mesmo, Vânia! Aproveite bem essa oportunidade de conviver com ele. Brinque, cuide, ria...
ExcluirQuerida, Lili♥️ é só a manifestação do carinho que recebi!
ResponderExcluirEstava ansiosa esperando a sua homenagem à Sofia. Alguns desses momentos acompanhei. Também presencie o carinho que ela tanto recebeu.
ResponderExcluirAcompanhou muito não é Paula!? Obrigada por respeitar a presença dela, até se enroscando e latindo para você! ( ela sempre gostou dos nossos amigos )
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