terça-feira, 18 de abril de 2017

De tudo fica um pouco

Tenho pensado nas gavetas abarrotadas de tranqueiras que tenho pela casa...
Sou uma daquelas pessoas que guarda coisas. Coisas que não servem para ninguém, a não ser para mim mesma.

E me fiz a pergunta crucial: está na hora de limpar? na hora de jogar fora? na hora de liberar espaço?

Sempre está.

Mas, será que não estarei negando para o futuro de alguém aquela sensação que sempre me deliciou de encontrar na velha bolsa de camurça preta em que minha mãe guardava coisinhas, as lembranças e sensações de um tempo em que não vivi?

A fotografia do meu pai jovem, um pedaço de uma carta de amor dos jovens João e Jandyra. Aquele santinho que distribuíram na missa de sétimo dia da tia; um cartão de Natal enviado pelo pai já ausente.

Sempre tive a sensação de descoberta e pertencimento, quando encontrava esses traços de vida de tantas pessoas diferentes. A família que já não vejo, os amigos que quase não tem mais nomes, aquela viagem que a mãe fez à praia e da fotografia em que a tia velha é uma mocinha bonita e faceira!

Me sentia feliz... isso mesmo, feliz.

Gostaria de saber que um dia, ao esbarrar com um caderno velho, em que anotações desconexas de uma aula piramidal na Letras, alguém tivesse vontade de ler um livro citado. Quem sabe, de repente, ao olharem para uma passagem de trem rumo à Santa Gertrudes, alguém dissesse: lembra como ela gostava de trem! Nossa, só falava nisso!

Gostaria de saber que dentro de um livro, repousa ainda uma flor... sem história, que vai despertar possibilidades de histórias.

E quem sabe, alguém vire a foto e leia o que está escrito lá atrás...

Algumas coisas são mesmo para serem jogadas fora... limpe, desapegue...

Mas a mensagem de desapego é repetitiva e essa repetição acaba esvaziando o conceito. Desapego tem a ver com acúmulo, não tem a ver com histórias, não tem a ver com afetos.

Algumas daquelas coisas todas, certamente, perderão totalmente o significado. Mas, e os traços que podem ser recuperados? Jogamos tudo fora, em nome de uma vida clean?

Olho de relance para minha estante aqui no escritório e vejo tantos amigos... vejo tantas histórias. Não, não consigo me desapegar deles!

Nem daquele pedaço de papel rasgado com um poema que tentei escrever ( pecado de menina boba )

E repito Drummond, que me acode com Resíduo

(...)
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória'






É isso!

4 comentários:

  1. Ah o bem que faz ler seus textos! Sempre me identifico,Elaine

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  2. Obrigada, Andréa! Eu também me identifico com você e sua história!

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  3. Que delícia! Não dá para desapegar história.

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    1. Não dá, Paula... não dá! Não serei a mulher dos gatos... serei a mulher dos papéis, fotografias, livros, filmes e cds!

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