Minha amiga Paula é companheira
de aventuras do conhecimento. Vamos juntas ao Seminário Internacional do Sesc
há uns bons anos. Nesse último, o tema era Democracia em Colapso – ai, ai, ai!
Foi em outubro de 2019. Faz tanto tempo, sabe?
Então, entramos nessa vertigem
temporal e tenho lido algumas coisas legais. Terminei a Montanha Mágica, o Philip
Roth, a Conceição Tavares. É pouco, se penso no tempo. É muito se penso nas
circunstâncias.
Então, ela que é uma leitora
muito mais ávida do que eu, liga e pergunta se eu já havia lido Uma
autobiografia, de Angela Davis, que compramos no Democracia em Colapso. Não,
Paula, ainda não! E ela, “estou lendo, chorei e tal, naquela parte...” Vou ler,
Paula, estou terminando a Montanha e vou ler.
Comecei e já terminei. Lido em
2020, ano da Covid-19.
É assim, que agora anoto no
livro. Penso nas pessoas que irão comprar esse meu volume no sebo. Quero que
tenham essa referência.
Lendo, com o lápis na mão,
grifando, anotando nas margens, pensando em mim mesma, nos futuros leitores ,
me envolvi completamente com a personalidade, a pessoa e os acontecimentos que
Angela Davis descreve.
No prefácio, a frase inicial - “Eu sou uma mulher negra e revolucionária” - me coloca no lugar de leitora respeitosa com
o imaginário que tinha construído ao longo de tanto tempo. Penso minha própria
história bem comedida de jovem em 1970, estudante universitária, trabalhadora, curiosa,
sonhadora. Quanto ouvi falar dessa moça, Angela Davis, em tantos lugares diferentes.
Quando descreve a prisão, logo no
início da autobiografia, me dá a deixa para a primeira anotação: “As duas
primeiras semanas passaram penosamente devagar. Parecia que eu estava presa
havia muito tempo. No entanto, assim que a rotina da prisão começou a se impor
de modo inexorável, os dias desembocavam imperceptivelmente uns nos outros e
parecia haver pouca diferença entre três dias e três semanas.”
Claro que identifiquei quase a
mesma disposição do espírito, quando olho em volta e me vejo há três meses aqui
em casa. Quase... jamais diria que é a mesma coisa.
Nessa disposição, fui lendo ou,
como nós leitores gostamos de dizer para fazer bonito, fruindo cada episódio.
Do preâmbulo da prisão, ela vai
para a cronologia da infância, juventude e nos anos 60, a prisão e a luta pela
liberdade não só dela, de todos os irmãos e irmãs presos políticos.
Vou descobrindo essa mulher
maravilhosa que, a todo momento, ressalta a importância da educação, da
formação crítica, da observação e análise de contexto.
O enfrentamento da realidade das
crianças negras, postas em uma escola decadente, sem estrutura, suja e
abandonada. A agressividade que brota, sem que ninguém consiga deter, nesse ambiente
triste e abandonado. A menininha Angela, sente que algo precisa mudar.
Não consigo, por mais que queira,
fazer jus ao que ela descreve destes anos. Ficou em mim a sensação de tristeza
em lembrar das nossas crianças, abandonadas em escolas sem estrutura. Dos pais
que lutam tanto e tão pouco conseguem. O pouco que se fez para mudar isso, o
tudo que se fez para desfazer o que já havia sido conquistado. Ela vai tecendo
reflexões e me fazendo estabelecer as relações com nossa realidade.
“Continuei a ter minhas dúvidas
sobre essa noção de ‘ trabalhe e serás recompensada’. Mas, admito, minha reação
não era exatamente objetiva. Por um lado, eu não acreditava inteiramente nisso.
Não fazia sentido para mim que todas aquelas pessoas não tinham ‘dado certo’
estivessem sofrendo por causa de falta de ambição e de força de vontade, para
construir uma vida melhor para si mesmas. Se isso fosse verdade, então um
número enorme de pessoas e nosso povo – talvez a maioria – era de fato
preguiçoso incapaz, como as pessoas brancas vivem dizendo”
“Foi então que comecei a entender
o verdadeiro significado do subdesenvolvimento: não é algo que justifique
utopias. Romantizar a penosa situação das pessoas oprimidas é perigoso e
ilusório.”
A jovem Angela no colégio, Angela
na universidade.
Os anos de formação acadêmica. A
escolha pela Filosofia. Filosofia, a arte de aprender a pensar. Diz tanto dessa
revolucionária que vai atrás do conhecimento. Luta pelas bolsas de estudo, pelo
direito de viajar, pela oportunidade de vivenciar outras realidades, sem, em nenhum
momento, esquecer a sua prioridade. O encontro com Marcuse, Adorno... A luta pela,
tão vilipendiada, justiça social. A luta pelo direito de lecionar na
universidade, de pertencer ao Partido Comunista.
“O impacto psicológico do
anticomunismo nas pessoas comuns dos Estados Unidos é muito profundo. Há alguma
coisa a respeito da palavra “comunismo” que, para quem não é esclarecido, evoca
não apenas o inimigo, mas também algo imoral, sujo.”
As palavras carregadas de sentidos
antagônicos.
Mulher, negra, revolucionária,
comunista, filósofa. Um antagonismo, vindo não da pluralidades de significados, mas do
desconhecimento.
Pensei muito na força das
palavras, em muitos momentos da leitura. Educação, conhecimento, justiça, dor,
história, tensão, amor, comunista... mulher, negra, revolucionária.
Educação, anotei ao lado da
seguinte descrição de uma das juradas no caso de acusação de Angela por
assassinato, sequestro e conspiração:
(...) ela nos levou de volta ao Arizona, onde aos doze anos, colheu
algodão e cortou cebolas. Depois ela disse ‘fui cozinheira de pratos rápidos. E
também trabalhei em uma fabrica de sanduiches para aqueles carrinhos que passam...
Quando cheguei a San José, fiz trabalho doméstico e trabalhei no Spivey’s como
lavadora de pratos’.
Enquanto falava Angela lembra da
própria mãe que fez percurso semelhante até à faculdade e possibilidade de dar
aulas em uma pequena escola. Tantas histórias semelhantes.
Essas poucas palavras que escrevo
aqui nunca darão conta do relato dessa autobiografia.
Emocionante, fundamental. Não sou
boa em adjetivos, nem em resenhas.
Sou emocional e é isso que quero
deixar registrado, minha emoção de leitora.
É a história dela, a história de
tantos.
Deixo aqui, mais um parágrafo... ia dizer que me fez pensar, mas não é
verdade. É um parágrafo forte, importante e eu gostaria que muitos o lessem. É só
por isso, que deixo aqui...
“Ansiedades, frustações geradas
pelo espectro de uma criança morta de fome convergem nossas mentes e nossos
corpos para as necessidades mais imediatas da vida. A arenga do ‘trabalho’, a
arenga sobre ‘tornar-se alguma coisa’. Exortações baseadas no medo, um medo
criado e sustentado por um sistema que não poderia subsistir sem as pessoas
pobres, o exército de reserva de pessoas desempregadas, o bode expiatório.
Instintos de sobrevivência corrompidos e desencaminhados por uma estrutura que
me força a expulsar meu companheiro desempregado de casa para que assistentes
sociais não suspendam aqueles cheques de que preciso para alimentar minha
criança faminta.”
(...)
E mais um...
“Não era apenas a repressão
política, mas o racismo, a pobreza, a brutalidade policial, as drogas e todo um
sem-número de maneiras pelas quais as pessoas negras, pardas, vermelhas,
amarelas e brancas da classe trabalhadora eram mantidas acorrentadas à miséria
e ao desespero. E não só no Estados Unidos, mas em países como o...”
( escrita em junho de 1974 )
... é isso. Sigo lendo.